terça-feira, 11 de agosto de 2009

Fuga


Só sei até aqui, pois o “de agora em diante” é um mistério para mim. Talvez também para você. Nossos destinos daqui para frente se desconhecem. Quando o “de agora em diante” tornar-se somente “agora-já”, tudo ficará para trás, nebuloso em nossas memórias. A mente sempre re-arranja as lembranças, não é? Um pouco mais de cor aqui, menos luz lá. E, se julgamos que a essência se conserva, é porque somos muito pretensiosos. Além do mais, as lembranças ficam escondidas, é preciso retirá-las uma a uma, cuidadosamente. Isso requer esforço, determinação. Como o que faço agora, escrevendo enquanto o voo não sai.

Você não percebe, mas no fundo estou tentando esquecer você. Esse é o ato de maior coragem para mim. Sinto-me tão antiga e sábia e louca que poderia simplesmente ser. Vi você comprando um livro que foi embrulhado para presente. William Blake. Horas depois fomos ao correio, você o enviou para alguém que desconheço. Claro, pois se nos conhecemos antes de ontem. É preciso contar três dias.

Foi assim: eu passava na frente daquela galeria e resolvi entrar. Aprecio arte embora às vezes não entenda a proposta de algumas obras. Faço a minha leitura, mesmo de um modo tosco. Sou muito esforçada, você disse. Depois de alguns instantes, fiquei tonta do seu olhar. Aceitei o vinho branco que me deram a beber e me dispersei pela instalação. Alguma coisa se anunciava.

Esquivando-me, querendo ser sombra de mim mesma, senti o seu olhar fazendo curvas e se agachando, espichando até me encontrar. Você é feito de olhar. O jogo começava, porque esse é um jogo da nossa espécie. Se você fosse pavão abriria seu leque de penas. Eu pensava coisas assim, distraída e ao mesmo tempo querendo compreender aqueles traços rascantes. Telas doídas até a raiz. E havia vídeos por todo o salão e labirintos verticais e horizontais, se quiséssemos poderíamos entrar neles, estreitos e escuros. Senti piedade por todos nós e quis chorar um pouco um choro seco para que ninguém visse. Sem esgares, lágrimas, lenços. Tudo é labiríntico caos, entende? Isso eu queria lhe dizer.

Sim, você entendia. Lembro de como você se aproximou e disse no meu ouvido que eu havia sido escolhida para a liberdade. E sua voz era suave. Você cheirava à colônia, entre doce e picante. Fiquei quieta um tempo, depois me virei delicadamente e vi de perto esses olhos capazes de fazer um estrago na vida da gente. A partir dali eu disse sim sim sim. Sem pensar no amanhã, vivendo só o “agora-para-sempre”.

Foi fácil: nós acreditamos nas nossas mentiras, inventadas com tamanha criatividade que pareciam nutrir toda carência, todo o vazio. Disso, não sabíamos, haveria mais vazio e mais. O jogo era assim: você pintor, eu modelo. Você cantor, eu bailarina. Você bandido, eu... De detalhes ninguém precisava. Pois havia aquele fogo, aquele desvario. Como quando li Marguerite Duras, sensual e apaixonada. Eu quis ser um pouco aquela mulher de O Homem Sentado no Corredor. Você leu Duras? Você já sentiu esse fogo que queima tão dentro e tão fundo que a pele se toma de uma absurda quentura quase insuportável?

Um dia eu senti isso. Naquele tempo eu não tinha certeza da dor ou da solidão, essa certeza que hoje está em mim como uma marca. Olho no espelho e vejo. Está lá, quase como uma cicatriz. Mas eu invento que sou como a personagem do livro, explosão de libido. É porque preciso me salvar, entende? Do ruído lá de fora, da fuligem, dos becos imundos. Dos sentidos que rebentam em dor e que nos dilaceram. Então, se interpreto outras de mim vivo mudando de personagem. Você vê? É uma coisa dentro da outra.

Os três dias se foram. Eu tinha certeza que havia um relógio de areia em algum lugar. Seu olhar fugiu do meu. Nem relutamos. Você pegou suas coisas, eu as minhas. Parecia artístico deixar alguém tão dignamente. Assim foi. Apenas vasculhamos nossos corpos de um modo quase desesperado. À procura de quê? O que precisava ser saciado que desconheço? Fingir pode parecer tão verdadeiro e isso me confunde.

O voo vai sair. Atrasos, sorrisos postiços de aeromoças que parecem sempre entediadas. Eu espero apenas pelo vinho tinto servido em copinhos de plástico transparentes. Olho as comissárias de bordo, será que alguma faria o que fiz? Foi porque senti aquela quentura novamente, como os personagens de Duras? Sem telefone, internet, camareiras, campainhas. Isso você pode entender, eu sei. Parei de escrever a alguns minutos, guardei o caderninho azul na bagagem de mão.

Agora eu delineio tudo em pensamento. Que lástima. Há algo que você não vai compreender. Não, não é compulsão ou coisa desse tipo. Eu apenas tomo o que julgo ser meu. Três dias devotados a você, que simplesmente iria embora sem deixar sequer um número de telefone? Então eu penso em mim, enquanto há tempo. Um tempo dentro, e não fora. Pensei muito sobre o que transcorreu. No hotel, na rua, no café... E sei que estou com a razão. Gostaria de ver sua cara de espanto ao abrir aquele pacote quando já estiver em casa.

Fui astuciosa. Não mexi na carteira. Revirei suas coisas no último minuto, quando você desceu para pagar a conta. E deixei tudo como estava, tenho essa habilidade. Vi você guardando as pedras na noite anterior. Contou mais de uma vez. Senti algo ilícito no ar. Não perguntei nada. Apenas agi no momento certo. Sim, sim. Faço isso há tanto tempo que se tornou parte de mim. Se você não tivesse algo valioso eu levaria qualquer outra coisa, entende? É da minha natureza. Eu disse que me chamava Marnie[1], não disse?

Finalmente o vinho tinto. Elas nunca enchem o copinho de plástico. Olho pela janelinha, nuvens. Estou nas nuvens, sim. Quando chegar em casa, tomarei um longo banho de banheira. Meu corpo íntegro novamente. Minha mente leve, sem culpas. Quem disse que você poderia confiar em mim?



[1] Referência à personagem de Alfred Hitchcock do filme Marnie, Confissões de uma Ladra

2 comentários:

Letícia disse...

Biba,

Sempre que faço uma leitura, me vêm diversas outras leituras em minha cabeça. E imagens também. Não gosto de comparações porque acredito que escritores bebem das fontes, mas, alguns, conseguem ser originais. Você é. Desde o "de agora em diante" ao copinho de vinho que essas comissárias com cara de tédio servem em aviões.

É um conto longo. E já li outros mais longos. Não entendo como se fala tanto em autores e as pessoas dizem comprar tantos livros se nem conseguem ler um texto na internet. Algo está errado no Reino da Dinamarca. Isso é mais um desabafo meu. Será que todos os textos publicados em blogues têm que ser curtos? E por que será que os leitores fogem quando encontram um texto mais longo? Por isso digo que é preciso coragem para enfrentar um vazio. Muitos podem ter lido, mas não entendo por que não deixam um palavra sequer. Eu ainda entendo o ser humano. É a minha meta.

E estarei sempre aqui porque é uma forma de respeito. Eu respeito aqueles que cuidam de nossa língua.

Beijos, Biba.

Biba disse...

Letícia, obrigada por tudo o que disse. Fico feliz que você tenha lido e encontrado algo a mais no meu conto. Também não entendo o medo das pessoas diante de textos maiores. Mas sinto que elas fogem. Não faz mal, a gente vai enfrentando esse vazio de leitores com coragem para escrever cada vez mais.

beijo e afeto
Carpe Diem!!