segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Pesadelo

Ás vezes eu não sei o que me passa. Se é o clima. Se é da vida esse ressoar constante. Se é a vontade de. Se é apenas a falta ou o excesso. Olho para os lados, para cima, para baixo. Os olhos cegam de tanto ver e quanto mais cegos mais veem. Eu lhes digo, às vezes não sei o que me passa, se é tristeza ou alegria. Ou só um momento de reflexão. Essa noite sonhei que um demônio me puxava pelos pés. Eu gritava mas minha voz não saia. Acordei apavorada, coração boca afora. Um demônio!! Tentei rezar mas não consegui. Não sei o que me passa mas acordei numa atmosfera de terror porque o sonho foi de certo modo muito convincente, quase-real. Por isso, não sei o que me passa. Se abro um livro da Virgínia Woolf. Se ouço um pouco de Bach. Se escrevo um poema. Se esqueço que estou aqui só por um pouquinho. Podia desaparecer feito o Belchior, mas sem ser encontrada! Risos!

domingo, 30 de agosto de 2009

O mundo é um moinho

Bateu saudade de Cartola e de seu samba tão verdadeiro.


Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atençao querida
Embora saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés

sábado, 29 de agosto de 2009

Aqueles cavalos brancos

De Germano Viana Xavier

Eram tantos os cavalos brancos
que passavam,
trotando,
pelos silêncios de minha rua.
E como eram alvos,
essencialmente puros.

E eu, solitário cavaleiro,
a descansar meus ouvidos
naquele pleno distanciar de pernas...

Eu saltitando de alegria,
eu sufocando minha agonia,
eu crescendo,
eu perdendo meus segredos,
eu sem saber de nada
nem do mundo,

eu me desconhecendo...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Caminho das Índias...


Tem um esquizofrênico. Uma psicopata. O psiquiatra. Gente mafiosa, pelo que deu para perceber. E tem o elenco da India. Quase tive uma parada cardíaca porque nunca assisto. O ritmo é quase de videoclipe agora, não como no tempo de "Roque Santeiro". É tudo fracionado, misturado, triturado. Foi uma experiência muito ruim essa de tentar assistir um capítulo de "Caminho das Índias". Não sei qual o ibope da novela, nem me interessa. O fato é que é pura indústria cultural, cheia de estereótipos e clichês, claro. É o que o brasileiro assiste. É disso que falam nas paradas de ônibus, nas praças, nos condomínios. Usam as expressões que não sei aqui repetir porque na verdade só assisti a meio capítulo. Não suportei. E não estou falando isso para malhar. Quem gosta que tire proveito, mas que meu tempo é mais bem utilizado isso é. Troquei de canal e fui assistir House. É enlatado mas pelo menos tem humor negro e curiosidades sobre medicina.

Meus alunos

Eu aposto neles como quem está no deserto desejando água. Eu aposto neles porque mais do que acreditar eu preciso entender. Mecanismos, ações, reações. Tudo requer tempo e muita calma. Um olhar prestativo, uma certa virtude de olhar. Para sempre ver como se fosse a primeira vez, a primeiridade que tanto procuro. Para tê-los não à minha frente dispostos em carteiras umas atrás das outras, em fileiras. Eu aposto neles porque sou tímida e justa ao mesmo tempo e consigo me fazer entender quando menos espero. Eu acredito neles por serem jovens e terem energia, capacidade, empenho. E muito, por terem feito uma escolha.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Tenho tido dias fantásticos nas minhas aulas, tão diferenciadas. Assuntos variados, temas relevantes e alunos interessadíssimos. Essa é a primeira impressão que tenho do semestre. Creio que as coisas tendem a melhorar ainda mais e isso me deixa muito curiosa e em expectativa para com os próximos encontros. Espero que os acadêmicos também estejam gostando da nova experiência.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Incertezas

Vivemos um tempo de "vazio ético", de incertezas constantes. Nada do que você faz ou diz tem aquele mote de "isso vai ficar pra sempre". O pra sempre é um instante vago e impreciso. Ando em uma crise danada quanto a isso. Parece que a gente vive sem expectativas ou que elas são tão incertas que dá vontade de sair correndo. "Pare o mundo que eu quero descer!" É mais ou menos isso. Hoje estou acabrunhada, cheia de dúvidas e começando a achar tudo sem graça como aquele menino do conto do Caio F.: Como é que ninguém desconfiava que o Clark Kent era o Super-Homem? É por aí...

sábado, 22 de agosto de 2009

Sobre generosidade

Generosidade. Essa palavra parece estar desaparecendo de nossas vidas. Tenho sentido falta de generosidade nas pessoas mais próximas, nos colegas, nos vizinhos. Ser generoso é dar-se um pouco além da conta, talvez. Alguns não conseguem conceber isso: compartilhar. Mas o nosso mundo, já tão desgastado, precisa urgente de pessoas generosas, amáveis, solícitas. Passa o tempo e meu coração se aborrece com as mesquinharias diárias. Pequenas ou não, estão se tornando para mim pouco suportáveis. Logo, me afasto do gênero humano quando queria estar no centro de sua alma mais ardorosa. Não sei fingir que está tudo bem quando alguém vê que estou chegando perto do elevador e o deixa ir embora. Não posso dizer que está tudo bem quando a pessoa simplesmente fecha o portão do prédio sendo que estou a dois degraus de passar por ele... São dois exemplos pequenos eu sei. Mas se alguém não é generoso de esperar você entrar, vai ser generoso em outras situações? Duvido muito.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Amanda

Era um instante selvagem, aquele de morder o pão. Havia voracidade e desejo de doce de leite. Amanda abriu a boca pequena e mastigou mais um pedaço. Era como comer a vida mesmo a seco. Era como brindar a existência com água da torneira. E ela bebia imaginariamente. Meio engasgada, agradeceu ao homem na porta da casa e quis pedir um pouco de geléia, quem sabe. Mas o que ele ofereceu, cara amarrada, foi aquele pão de ontem. Pão amanhecido tinha gosto de vida já vivida, como a dela. Era criança só no tamanho. Agradeceu novamente e se pôs a andar pela calçada sem buracos. Contava coisas pelo chão. Tinha vontade de brincar, rir, porém apenas suspirou. Olhou a manhã fria e se encarapitou um pouco. Aquele pão seria talvez sua única refeição do dia. Pensou nos irmãos. Por onde andariam? Ela estava só. Eles a abandonaram na rodoviária, não sabia dizer o tempo exato. Talvez dias, meses. Ainda não fazia um ano. Contou pedrinhas que colocou no bolso surrado de seu casaquinho e foi descansar um pouco no banco da praça vazia àquela hora da manhã.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Andrei Tarkoviskj (Solaris)

Perguntar revela um desejo de saber, para preservar verdades precisamos de mistérios. O mistério da felicidade, da morte, do amor.

domingo, 16 de agosto de 2009

O cotidiano

Meus leitores e leitoras, as férias se foram. Rápido. Como uma ventania. Nem pude fazer as coisas que queria de verdade. São sempre as mais difíceis. Mas tive um encontro diário com vocês. De carinho, afetuosidade mútua. Somos quase 50. Somos muitos! Eu sempre os espero por aqui. Sei dos furtivos e calados. E gosto dos falantes e bem humorados. Assim como respeito os mais sisudos. Gosto de gente. E hoje pensei nessa diversidade toda. Vocês são de todos os lugares do Brasil!! É emocionante ter amigos assim, de tantas paragens, com tantas vivências diferenciadas. Com o final das férias talvez eu não consiga escrever todo dia. Mas não importa. Sei que estarão comigo mesmo em pensamento. E, quando vierem aqui, que seja um local aprazível e bacana. Eu os recebo com meu carinho que é muito muito grande. Comecemos bem a semana!! Carpe Diem!!

sábado, 15 de agosto de 2009

Inundei o quarto. Era previsível. Por vezes deixamos de lado alguns sentimentos mais profundos e doídos e quando vemos, eles estão à espreita. Mas hoje é sábado. O quarto inundado vai secando. Tem sol. Vontade de que os olhos vejam outras coisas para além dos temores e dúvidas. Os olhos, sempre eles. Tão atentos e meticulosos em sua procura por algo mais. Que minha prece seja ouvida. Que meus olhares se desviem do inarticulado e do perigo das trevas. Como sou super do Bem, acho que o dia vai passar bem bonito e afetuoso. Que vocês me acompanhem!!

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Coisas

Não sei o que sonhei. Não lembro que dia é hoje. Não faço a menor ideia das coisas. Coisas coisas coisas. Estou aprendendo a ver. O dia. As horas. O mundo. Geralmente não gosto do que vejo, assim, a um primeiro olhar. Mas tudo tem sua segunda chance. Não lembro quando eles se foram. E, para eles, não há volta. Sei que me sinto vagamente conformada, vagamente. Não sei porque os dias correm tão depressa. Sinto um nó na garganta mas o choro não vem. Às vezes é melhor que não. Porque tenho medo de um dia voltar a ser Alice e inundar uma sala de lágrimas. Lembram da Alice? Lewis Carol. Alguma coisa eu sei. Alguma coisa esqueci. Alguma coisa vem. Estou esperando na vaguidão do momento. Que seja você que me abraça forte e comprime meus músculos. Que seja você, sempre ao meu lado dizendo coisas engraçadas para eu rir da vida um pouco. Que seja você, de agora e sempre.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Prece II

Eu me salvei de mim. Fui do precipício ao cume da montanha. E doeu.Tanto e tão afirmativamente que eu só sabia conjugar o verbo doer e sempre no presente. Porque era um eterno agora. Sem amanhã, eu não via as luzes que se acendiam, nem as passagens que se abriam discretas. Eu já fui feita de dor. Eu já fui feita de mais eus do que podia carregar comigo. Por isso invadi o terreno da insuficiência, da loucura, do não ser. O esquisito é que teve alguém no meio disso que me empurrou: agora vai, ele disse. E eu acreditei. Por também ser feita de afeto, eu acreditei nele. E, nas noites de insônia, assistindo Camille Claudel, ele era desespero por mim. E eu lembrava Caio F e Clarice Lispector e Clarissa, a Dalloway. Estremecia no silêncio de minha respiração paralisada. Sofria. E ele empurrava, com delicadeza: agora vai. Sei que fui me transformando no que sou agora e tem algo de doce-amargo nessa vivência. Algo de inacreditável. Eu sei que peço demais e que Deus sabe o que é prioridade, por isso é Deus. O milagre da alegria é o mais indescritível depois da tristeza. Ah, esse sabor nos lábios. O beijo recente e as mãos firmes me largando no mundo: agora vai. Deus, não deixa isso acabar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Você

Quando você me conheceu naqueles idos anos 80, eu usava gola rulê, como na foto do blog. Era um tempo de muita esperança e solidão. Esperança num amor que fosse eterno. Solidão pelos dias passados a sós, com meus livros e discos. É, naquele tempo era o vinil. Lembro de você como se fosse agora. Só que agora você está longe, em outras paragens. Mas é modo de dizer. Lembro do seu cabelo e do olhar, tão intenso, tão para dentro que se expunha sem querer. E era esse não querer querendo que me fascinava. Lembro que tomamos vodca e isso não era coisa para uma garota fazer, mesmo no século XX. Pois estávamos entravados naquele século. Rimos à toa antes do álcool por uma razão que nenhum de nós chegou a descobrir. Rimos depois do álcool, embalados por uma canção que cantamos desafinados. Mas rimos, acima de tudo, porque era a vida que chegava para nós dois. Não seria eterna como pensei, mas foi uma vida e tanto.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Fuga


Só sei até aqui, pois o “de agora em diante” é um mistério para mim. Talvez também para você. Nossos destinos daqui para frente se desconhecem. Quando o “de agora em diante” tornar-se somente “agora-já”, tudo ficará para trás, nebuloso em nossas memórias. A mente sempre re-arranja as lembranças, não é? Um pouco mais de cor aqui, menos luz lá. E, se julgamos que a essência se conserva, é porque somos muito pretensiosos. Além do mais, as lembranças ficam escondidas, é preciso retirá-las uma a uma, cuidadosamente. Isso requer esforço, determinação. Como o que faço agora, escrevendo enquanto o voo não sai.

Você não percebe, mas no fundo estou tentando esquecer você. Esse é o ato de maior coragem para mim. Sinto-me tão antiga e sábia e louca que poderia simplesmente ser. Vi você comprando um livro que foi embrulhado para presente. William Blake. Horas depois fomos ao correio, você o enviou para alguém que desconheço. Claro, pois se nos conhecemos antes de ontem. É preciso contar três dias.

Foi assim: eu passava na frente daquela galeria e resolvi entrar. Aprecio arte embora às vezes não entenda a proposta de algumas obras. Faço a minha leitura, mesmo de um modo tosco. Sou muito esforçada, você disse. Depois de alguns instantes, fiquei tonta do seu olhar. Aceitei o vinho branco que me deram a beber e me dispersei pela instalação. Alguma coisa se anunciava.

Esquivando-me, querendo ser sombra de mim mesma, senti o seu olhar fazendo curvas e se agachando, espichando até me encontrar. Você é feito de olhar. O jogo começava, porque esse é um jogo da nossa espécie. Se você fosse pavão abriria seu leque de penas. Eu pensava coisas assim, distraída e ao mesmo tempo querendo compreender aqueles traços rascantes. Telas doídas até a raiz. E havia vídeos por todo o salão e labirintos verticais e horizontais, se quiséssemos poderíamos entrar neles, estreitos e escuros. Senti piedade por todos nós e quis chorar um pouco um choro seco para que ninguém visse. Sem esgares, lágrimas, lenços. Tudo é labiríntico caos, entende? Isso eu queria lhe dizer.

Sim, você entendia. Lembro de como você se aproximou e disse no meu ouvido que eu havia sido escolhida para a liberdade. E sua voz era suave. Você cheirava à colônia, entre doce e picante. Fiquei quieta um tempo, depois me virei delicadamente e vi de perto esses olhos capazes de fazer um estrago na vida da gente. A partir dali eu disse sim sim sim. Sem pensar no amanhã, vivendo só o “agora-para-sempre”.

Foi fácil: nós acreditamos nas nossas mentiras, inventadas com tamanha criatividade que pareciam nutrir toda carência, todo o vazio. Disso, não sabíamos, haveria mais vazio e mais. O jogo era assim: você pintor, eu modelo. Você cantor, eu bailarina. Você bandido, eu... De detalhes ninguém precisava. Pois havia aquele fogo, aquele desvario. Como quando li Marguerite Duras, sensual e apaixonada. Eu quis ser um pouco aquela mulher de O Homem Sentado no Corredor. Você leu Duras? Você já sentiu esse fogo que queima tão dentro e tão fundo que a pele se toma de uma absurda quentura quase insuportável?

Um dia eu senti isso. Naquele tempo eu não tinha certeza da dor ou da solidão, essa certeza que hoje está em mim como uma marca. Olho no espelho e vejo. Está lá, quase como uma cicatriz. Mas eu invento que sou como a personagem do livro, explosão de libido. É porque preciso me salvar, entende? Do ruído lá de fora, da fuligem, dos becos imundos. Dos sentidos que rebentam em dor e que nos dilaceram. Então, se interpreto outras de mim vivo mudando de personagem. Você vê? É uma coisa dentro da outra.

Os três dias se foram. Eu tinha certeza que havia um relógio de areia em algum lugar. Seu olhar fugiu do meu. Nem relutamos. Você pegou suas coisas, eu as minhas. Parecia artístico deixar alguém tão dignamente. Assim foi. Apenas vasculhamos nossos corpos de um modo quase desesperado. À procura de quê? O que precisava ser saciado que desconheço? Fingir pode parecer tão verdadeiro e isso me confunde.

O voo vai sair. Atrasos, sorrisos postiços de aeromoças que parecem sempre entediadas. Eu espero apenas pelo vinho tinto servido em copinhos de plástico transparentes. Olho as comissárias de bordo, será que alguma faria o que fiz? Foi porque senti aquela quentura novamente, como os personagens de Duras? Sem telefone, internet, camareiras, campainhas. Isso você pode entender, eu sei. Parei de escrever a alguns minutos, guardei o caderninho azul na bagagem de mão.

Agora eu delineio tudo em pensamento. Que lástima. Há algo que você não vai compreender. Não, não é compulsão ou coisa desse tipo. Eu apenas tomo o que julgo ser meu. Três dias devotados a você, que simplesmente iria embora sem deixar sequer um número de telefone? Então eu penso em mim, enquanto há tempo. Um tempo dentro, e não fora. Pensei muito sobre o que transcorreu. No hotel, na rua, no café... E sei que estou com a razão. Gostaria de ver sua cara de espanto ao abrir aquele pacote quando já estiver em casa.

Fui astuciosa. Não mexi na carteira. Revirei suas coisas no último minuto, quando você desceu para pagar a conta. E deixei tudo como estava, tenho essa habilidade. Vi você guardando as pedras na noite anterior. Contou mais de uma vez. Senti algo ilícito no ar. Não perguntei nada. Apenas agi no momento certo. Sim, sim. Faço isso há tanto tempo que se tornou parte de mim. Se você não tivesse algo valioso eu levaria qualquer outra coisa, entende? É da minha natureza. Eu disse que me chamava Marnie[1], não disse?

Finalmente o vinho tinto. Elas nunca enchem o copinho de plástico. Olho pela janelinha, nuvens. Estou nas nuvens, sim. Quando chegar em casa, tomarei um longo banho de banheira. Meu corpo íntegro novamente. Minha mente leve, sem culpas. Quem disse que você poderia confiar em mim?



[1] Referência à personagem de Alfred Hitchcock do filme Marnie, Confissões de uma Ladra

Verso-sopro

Trago em mim um único verso que não decorei ainda. Há muitas décadas ele me persegue mas eu não consigo capturá-lo. Esse verso danado me escapa sempre, como um sopro. Talvez deva ser assim mesmo, um sopro divino. A gente só sente e suspira baixinho para não atrapalhar o farfalhar das asas do anjo que é tão gostoso de ouvir. Eu passaria a vida ouvindo os anjos em suas cantigas e vendo suas asas se agigantarem para um voo maior. Eu queria ver os anjos assim como sinto o sopro do verso em meus ouvidos. Mas acho que devagarinho vou sentindo, sem entraves. Porque é preciso estar extraviado de si mesmo para entender as coisas divinas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Caravela

A casa era branca e os quartos também. Às paredes seguravam-se uns quadros. Pintura dela. Ele nunca. Mas a mulher gostava de arriscar em cores seus pincéis baratos. E, ouvindo Gismonti, os dois estendiam os braços à procura.

Um dia ela ligou a televisão ao acaso. Viu Luciano Alabarse. Ele disse: "Essa procura, coisa de geminiano mesmo". Sou aquário, disseram. O ascendente dele era Libra. O dela iam averiguar.

Eles sabiam que sim e que não.

Quando ouviam Caravela, então, eles sabiam tudo. De todas as coisas. Daí sentirem-se pobres e humanos.

Ela aproveitou o último tubo de verde e apertou-o com as mãos pequenas e magras. Os dedos espalharam a cor na parede do quarto de hóspedes. Gostavam de chamar assim aquela sala onde era também escritório e ateliê e um espaço aberto dentro da casa. Uma espécie de natureza roeu o concreto. Um musgo. Um grito. Um aviso. Riram. Não era de chorar, por enquanto.

Faziam um esforço grande. Esforço de gigantes. Para acreditar, aceder, intuir. Alguma coisa batendo forte e dentro que era o mesmo que ouvir Caravela e saber. Vinha a certeza obstinada. Seus olhos enredados em não ver além. E isso é que era perigoso. Disso não suspeitavam. Nem ouvindo Egberto. Nem bebendo brandy. Nem se lambendo. E beijando. Nem quando eram bonitos um ao outro. E ele penteava seus cabelos com os dedos. E ela alisava os dele. Nem lendo Pessoa. Nem assim.

Quando a música acabava eles ouviam o silêncio respirando. Medo? Para quê? Eles só compreendiam melhor que nada pode ser compreendido melhor. E ninguém morria. Tocavam suas bocas cheias de perguntas e vinha o beijo abafando as respostas que ainda não. Um dia, sem dúvida.

Para depois, abrir os livros e reconhecer. Para depois deitarem um sobre o outro. Para depois o depois. Bastava-lhes o amor que, esse sim, não entendiam direito de onde ou porquê. Era mistério e luz. Aquele brilho. Caravela.

Ondas batendo. Rochas.
Tudo sereno, no fundo intocado.

domingo, 9 de agosto de 2009

Domingo


E no final, lembrou. Tinha muita sorte de viver assim, sem preocupações. Eles vinham todos os domingos e lhe traziam maçãs. Era um ritual: maçãs e flores do campo. Ela era feliz pois gostava da casa sempre alvejada. Dos trilhos pelos corredores. Das janelas trancadas. Dos choques elétricos. Foi aí que quis falar dos choques. Mas eles já estavam no carro dando adeus com aquelas mãos um pouco tolas. Então eles sabiam? Das portas e seus mistérios. Dos gritos que vinham do quarto ao lado. Das injeções quando se alegrava e corria pelas salas dando cambalhotas. Do soro que durava horas e a enfermeira com cara de agente penitenciário. Eles sabiam que ela estava ali? Olhou em volta e deixou cair as maçãs do lindo cesto adornado. As flores jogou no piso gelado. E pisou em cima delas tantas vezes que nem percebeu as quatro mãos lhe arrastando para dentro. Na sua cela solitária ela viu uma pequena borboleta. Ficou olhando enquanto os medicamentos não faziam efeito. No final, ela lembrou, também ela era um borboleta no casulo.

sábado, 8 de agosto de 2009

Obrigava-se, então. Era preciso tentar. Não que quisesse. Tudo parecia turvo. Estava exasperada pela demora. Ele se empenhava tanto mas ela não correspondia. Havia um entrave, uma lacuna. Deu-se por inteiro naquilo que de pouco lhe restava: dignidade. Achou melhor desistirem no meio da jornada. Para seu espanto ele suspirou aliviado. Então, para ele também era um martírio? Pensou martírio e aí percebeu o quanto aquilo tinha ido longe demais. Não era assim que se amava. Não, de jeito nenhum. Que ele fosse embora de vez e a deixasse com suas ilusões passageiras, que logo a abandonavam como ele ia fazer. Talvez não hoje. Mas ia. Começava a sentir aquela opressão no peito e o jeito de olhar as coisas havia se transformado em raio laser. Tudo perdurava porque eram pouco talentosos com as despedidas. Cada um do seu lado da cama e pronto, o sono veio em seguida apesar dos pensamentos tortuosos dela.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Vulcão. Lava. Quentura que mata. Viviam no limiar desse calor. Viviam das rimas quentes de suas pernas entrelaçadas. Um balé sem coreografia definida. Viviam de pensar que eles eram assim, lavas que escorrem pelas valas de uma cidade já abandonada pelo medo. Por isso, se entregavam ao que lhes era dado ousar. Por isso se gemiam era como caminhar pela lava quente uivando. De seus traços guardariam o melhor de tudo, os rostos sabidamente abertos ao prazer. À deriva, seguiam. Mãos sonolentas se aninhando um ao outro. E o dia vingava, com fuligem do vulcão. Mas eles pouco se importavam.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O canto

Tricotava. Tricotava sem fim. Um dia ouviu vozes angelicais que vinham do outro quarto. Ouviu com devoção. Com encanto de quem já viveu tudo. Anjos numa rua barulhenta de São Paulo. E ela os ouvia? Coisa de Deus, pensou, voltando a contar os pontos na agulha. A filha, no outro quarto não ouvia nada além das buzinas e gritos entorpecendo o entardecer da cidade grande. Um dia a que tricotava iria contar-lhe o acontecido. Quando fosse a hora. Tudo tinha sua hora. Acabara de errar um ponto. Era preciso refazer. Mas sempre é preciso refazer tantas coisas. A vida, afinal era como seu tricotar incansável. Vez ou outra errava-se um ponto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Paris será uma festa

Simplesmente assim. Uso Chanel Nº5, mas só de vez em quando. Senão, fico com Angel de Thierry Mugler. Sim, são perfumes caros, mas eu os adoro e faço durar. Por que falar de perfumes em uma segunda-feira? É que tento lembrar do meu perfume em São Paulo, sei que era da L'Áqua DiFiori, mas o nome esqueci. Assim como esqueci o perfume da minha avó que também era da L'Aqua. Sinto saudade dela, no início até sentia seu perfume, sabe. Era como uma presença. Hoje ainda a tenho comigo. Por vezes acordo e penso que ela está na cozinha - seu lugar predileto - fazendo quitutes gostosos. Aqueles pães ou pavês. É a melhor coisa quando acordo e tenho essa sensação. Aprendi a ter memórias boas depois de um turbilhão de tristeza. Foi nessa época que fui para Paris. Quando a perdi, em 1995. Eu fiquei muito abalada, o médico dela me receitou Prozac e uma longa viagem. Tirei férias do jornal. O Luiz também. Pegamos mochila, o pouco dinheiro que tínhamos guardado mas que dava pra se virar, compramos dólares, travellers cheques e fomos. Primeiro Bruxelas, depois Londres, Amsterdã na volta, Berlim... Paris. Trajetos na memória, nas fotos, no coração. No ano seguinte ou no posterior, voltamos. Novamente Londres, Paris, mas desta vez mais da Alemanha e inclusive Dinamarca. Inesquecível. Lembro da inveja torpe dos colegas do jornal e de minha forma de ignorá-los, obtusos, tacanhos. Nunca mais falamos das viagens para os outros. Apenas entre nós. Como um segredo secretíssimo. Também conheci a Suíça. As viagens ficaram de lado com outros gastos que surgiram. Mas, um dia, sim, Paris novamente e será uma festa.

domingo, 2 de agosto de 2009

Herbert Vianna

E são tantas marcas

Que já fazem parte

Do que sou agora

Mas ainda sei me virar


sábado, 1 de agosto de 2009

O sábado dela

Só o tempo pode dizer. Mas o tempo fala? E como! Seu texto é às vezes incompreensível. Pensava essas coisas quando lembrou que era sábado e que o dia estava livre para fazer o que quisesse, embora não quisesse tantas coisas assim, então, de pronto, escreveu um poema. Sem rimas, sem métrica. Mas parecia com um poema. Gostou e ficou lendo as palavras escritas com a caneta bic. Coisa que queria era um dia ter uma caneta daquelas, sabe? Finas. Olhou em volta e viu o cachorro dormindo. A manhã estava quieta demais, depois do poema. Talvez, se ligasse para algum amigo. Que amigos tinha? Colegas, no máximo. Era assim muito sozinha. Mas morava em uma cobertura. Tinha lareira. Escadas. Lustres caros. Um colchão de R$ 10 mil. O que mais podia fazer com tanto dinheiro? Tudo o que comprava, no entanto, não aplacava sua feiura interior. Era mesmo horrenda, pensou, ao lembrar as coisas que ele dissera antes de partir. Levantou-se e olhou seu corpo no enorme espelho da sala. Sabia que ele tinha razão: ela estava flácida. Mas, não ia malhar todo dia como ele recomendou pretensioso. Se a quisesse teria que ser assim, flácida. Nem bem lembrou as palavras dele e nasceu outro poema torto. Hoje o dia estava inspirado. Ia fazer as unhas, o cabelo. Pegar seu carro e sair por aí. O sábado estava resolvido. Talvez encontrasse algum caroneiro na estrada. Quem sabe.