domingo, 28 de outubro de 2007

Lugar Algum

Vi você com aquele jeito manso e distraído, como se o mundo apenas estivesse aí, para coisa alguma. Como quando você era criança e a gente brincava de olhar as nuvens ou deitava no tapete da sala e ouvia Bach, lembra? Você desde cedo gostava dos clássicos o que o fazia ser mimado pelo nosso pai. Eu não me importava, gostava mesmo era de resolver quebra-cabeças.
Sabe, eu não consegui dizer, mas ontem sonhei com você. Havia o
pequeno dragão sobre a mesa, que você dizia que era para proteger. A cortina deixava entrar uma luz suave que se expandia sobre a escultura e sua mão quase tocava nela com delicadeza. No sonho e na realidade houve este gesto inconcluso, pois você parou a mão no ar e ficou olhando seus próprios dedos longos, nosferáticos, se é que essa palavra existe. Foi esse gesto que me fez estremecer naquele dia.
A vida segue indiferente. Ninguém mais telefona para saber se você superou ou não. O tempo cura e também afasta. Nós estamos nos afastando, era isso que eu precisava dizer.
Hoje, diante de você, dos seus olhos turvos, faltou-me coragem. Como no dia em que você ficou no parapeito, olhando os carros lá embaixo e eu simplesmente duvidei. Da vida, do amor, da fé. Naquele dia você desceu, quieto e sério, numa performance esmagadora. Eu só consegui respirar porque os pulmões se negaram a parar. O susto-medo-horror está até hoje em mim.
Nunca mais fiquei vendo o tempo passar na sacada, somente hoje voltei para cá para rever o perigo enquanto a chuva lava o asfalto. O estranho é que eu percebia suas atitudes, mas achava que isso não queria dizer nada. Esquecia que cada sinal tem sua força específica. E eles se sucederam, cumprindo um destino.
Diante dos seus olhos que olham para lugar algum, minha coragem é vencida pela sensação de impotência. Tenho me perguntado: por que ou para que você retornaria? Vi uns rabiscos sem sentido aparente a seu lado, perto da lixeira. Reconheci algo em você que não sei bem definir. Eu gostaria de lhe falar de mim e do mundo. Para tentar fazer com que você me veja. E, talvez volte para casa.

Eu parei de chorar porque até isso cansa. Estou realmente exausta. Daí que vê-lo assim é como me calar também quando eu deveria gritar. Foi uma escolha sua. Ir se afastando, abrindo um caminho desconhecido para o qual só você tem acesso. Por que obrigá-lo a voltar? Ninguém compreende isso. Eu sim, talvez porque também nunca quis o que se chama mundo real, talvez por isso eu o compreenda. O seu silêncio é como uma marcação de teatro. A gente sabe a fala de cada um e também qual o passo seguinte. Aqui eu devo parar. Essa é a sua marca. O silêncio é agora a sua fala maior. De dentro de minha dor eu me calo para que você se fortaleça. E, se você realmente me olhar, talvez eu veja nos seus olhos e eles deixem de ser turvos para mim. E, quem sabe eu compreenda finalmente.

6 comentários:

Anônimo disse...

OI Biba
Ta bem legal seu texto.
Abraço

Biba disse...

Abraço Bruna e obrigada. Carpe Diem!

Anônimo disse...

olá Biba! obrigado pela visita lá. aqui, amei "lugar algum": "Eu parei de chorar porque até isso cansa".
bjim e feliz semana.
paz na vida
e luz na lida

Biba disse...

Ira, obrigada pela visita aqui. Também lhe desejo muita paz e luz. Carpe Diem!

Caco disse...

as eloqüência maior de algumas pessoas está no seus silêncios - muitas vezes indecifrável.

muito lindo!
bjs

Biba disse...

Concordo, o silêncio para mim é sempre indecifrável. Por isso, inquietante. Beijo de saudade.Carpe Diem!