quarta-feira, 3 de março de 2010

Única

Ela vai tendo ganas da vida. Queria um chocolate quente porque esfriou um pouco e dá aquele prazer outonal em pleno verão. Ela deixaria tudo por quem cometer loucuras, mas é dada ao esquecimento. Não levaria muito tempo e as coisas voltariam a ser como antes: um tanto ríspidas, um tanto sem cor. Ela passa as mãos pelos quadris um pouco largos e as recolhe ao peito, sob a seda. Basta olhar essa mulher na frente da vitrine para saber que é sozinha e feita para se lembrar dela. Porque mansa e lenta, carrega geneticamente uma carga, a de ser única. Ela não teve com quem dividir seus brinquedos, por isso olha atentamente para o mostruário da loja. Vai comprar mais uma boneca. Dessas de pano. São as que coleciona. Gosta do toque no tecido delas. Das florezinhas riscadas. Do aroma que exalam. E, nessas ganas da vida, ela queria um companheiro sim, contudo é tarde. Ela experimenta a sensação de que perdeu sua chance. Para ela havia uma só. O noivo que morreu há décadas. Fiel a ele, ainda usa a aliança. Fiel a ele, nunca mais outro homem. Fiel a ele, solidão. A boneca de pano é macia, usa tranças e um chapeuzinho. Vai levar, já está pagando no caixa. Em sua casa, as outras bonecas conversam entre si, distraídas...

4 comentários:

Lilian disse...

Nossa!
Que legal!
Veja o que entendi... rs...
O preço de desejar ser única é reduzir suas experiências a esta unidade.
E por mais que ouse(?), o que ela vive internamente é uma mesma emoção, uma mesma vivência.
Que se repete mecanicamente.
Uma mesma cena, que apenas muda de cor.
Ficou guardada na parede da memória e vale mais que a vida em si.
Se condenou a um prazer infantil. COMER chocolate e COLECIONAR bonecas.
Bonecas que, talvez, logo sejam esquecidas num canto.
E sabe, as bonecas que conversam em casa, parecem apenas arquétipos de uma promessa de femininio que não se cumpriu. Talvez encerrem o modelo, a metáfora familiar do que é ser uma mulher.
Rs...
Biba, rs.. eu viajo nas histórias. E, sim, vejo onde meu coração responde a estas, e onde se liberta. Adoro!

bjo.

lila*lilian*

Letícia Palmeira disse...

Meu queixo caiu. Seu texto fala alto, Biba. E estou sem palavras. Acho que a mulher sou eu. Acabo de me tornar a mulher que você criou.

Beijos, Biba.
E, como sempre, na luta. =)

Biba disse...

Lila, que beleza seu comentário, com toda essa leitura da personagem. Amei. obrigada por compartilhar comigo o que você sente.

Beijos,
Carpe Diem!!

Biba disse...

Letícia, que bom que esteve aqui e se identificou com a personagem. Beijo imenso e carinho.
Carpe Diem!!