quarta-feira, 4 de abril de 2007

Oliveiras



"Gravarei tudo o que encontrar,
gravarei todos os meus segredos
numa oliveira no quintal de minha casa."
Tawfia Zayyad


A chuva deslizava lenta pela vidraça. A poeira dos dias nela acumulada, escorria grossa. Tristemente. Por trás, inventando curvas na janela, um rosto pálido olhava o vazio da cidade adormecida. Ao telefone a voz parecia tonta, a tal ponto que ele se julgou também entontecido. Ela pediu que viesse. Que fosse rápido. Urgência no tom cambaleante e meio ameaçador. Nenhum indício desse silêncio desgrenhado de agora.
"Este já é o terceiro". O uísque não é dos piores e seu estômago se aquece. Uma certa indiferença vai tocando por debaixo da vontade de entender o que se passa. Ela continua a olhar o oco da cidade, talvez velando pelos seus segredos. De repente, ele lembra de uma tarde de sol em maio quando ela dissera que viajaria para Beirute. Falou da terra. Judeus, árabes, palestinos. Gentes que conhecia. Lugares. Um palestino em especial.
- Minha avó era libanesa. - O silêncio enfim se preenchia. - Meu pai sempre voltava lá para rever os parentes. Uma vez, eu era pequena, fui com ele. - Olhou-o com dissimulada franqueza. - Quero rever aqueles paradeiros. Vou revirar-me um pouco.
Naquela tarde de maio, no parque, distraída ela roía as unhas. Possuía um jeito de quem inventa mundos inalcançáveis. Os cabelos levemente crespos iam caindo sobre a testa enquanto caminhavam entre as árvores e ela puxava a coleira do dobermann que insistia em ficar para trás. Ainda não havia a guerra. Agora, servindo-se do quarto uísque - a dose exagerando-se no copo - ele vê uma mulher que tenta a coragem de confidenciar algo. Qualquer coisa que parece doer ou simplesmente incomodar. Algo entre um segredo e uma revelação.
Na parede, fotos da família. Um poster. Beirute... Qualquer coisa punha-o agitado. A vista da cidade, talvez. Ainda ontem, pela televisão... Beirute abraçando as bombas num desesperado gesto que lhe pareceu dizer da inutilidade de ser uma cidade. De estar plantada sobre um solo fértil. Seus olhos superpunham à Beirute amena do quadro, que fazia lembrar oliveiras, uma outra, arrasada.
Viu através da janela que a chuva diminuía, o olhar vago em um luminoso qualquer. Sobre a mesa ele descobriu um envelope. Um vidro de almíscar. Um resto de torta em um pires. Frutas sobre uma cestinha de vime, um guardanapo. Natureza morta. Pensou então na Beirute agônica, desfalecida, enquanto ela voltava os olhos negros na sua direção. Diante dele, a mão dela estendida. Percebeu uns dedos longos. Umas unhas claras e roídas. Desfalecidas também, elas, as mãos trêmulas sobre o envelope. O instante de hesitação até pegar a carta nas mãos pareceu-lhe não ter fim. Sentou perto do aquecedor. Viu que ela bebia do seu copo de uísque.
Não entendeu nada. Mas era uma carta, devia ser. Ele enxergava tudo enviesado. Havia o envelope entre seus dedos, uma letra miúda mal se sobressaindo no papel. Um carimbo. Selos. Beirute, leu em algum lugar, talvez dentro. Era impossível compreender, o cérebro travado pelo álcool deixava-o amortecido.
- Beirute..., ela falou com uma voz intensa. Não que houvesse dor. Ou mágoa. Havia falta. Apenas isso, ele entendeu. Quis dizer que sim, desistiu. A penumbra não o deixava observar melhor a expressão dela, por isso não soube - senão adivinhando - que ela possuía um aspecto de oliveira jovem ao revelar: “Meu coração está em Beirute”[1]. Para sempre, ele suspeitou.
[1] Alusão a título de uma reportagem impressa nos anos 70

Um comentário:

Diogo Osorio Coelho disse...

Pois bem querida: Este é o segundo conto que leio de tua autoria e já percebo um estilo próprio. Parabéns! Eis algo que procuro e ainda não achei... Mas deixarei pra comentar o “teu” estilo durante um bom papo, com uma cervejinha, feijoada e Noel ao fundo... hehehehe. Beijão.