sábado, 25 de agosto de 2007

Água de Melissa

Tudo o que eu tenho aqui se resume a isso, água de Melissa e vontade de chorar. Ontem o caminhão levou a mudança. Hoje estou pintando a casa que, vazia, me põe em estado de vigília. Uma casa quieta assim é como um lugar tão carregado de recordações que a gente mal pode suportar. São os cheiros, o bolor dos dias, a rima das horas. Tudo que fez conexão conosco e agora é irrealidade, distração. As paredes vão tomando essa nova cor que escolhi. Cida diz que é uma cor enfadonha. E isso existe? Eu acho que ela está mais triste do que eu, a Cida. Sabe, estou pintando sem pressa, tanto que agora parei para apenas pensar.

Não sei. Eu não queria sair daqui, não depois de 12 anos, mas agora nós vamos para outra cidade e isso é apavorante. Eu já devia estar lá, com a mudança, mas eu evitei. Deixa que os outros arrumem tudo como quiserem, eu preciso ficar mais um pouco, olhar a casa, pintá-la como um último gesto de carinho. O pincel sobe e desce, a tinta às vezes escorre porque não sou profissional e me descuido um pouco enquanto penso. Ontem eu senti algo estranho no meio dessa solidão de casa vazia. Uma coisa que me estremeceu e eu tive um medo absurdo de ficar presa aqui. Imagine, as janelas todas abertas e eu...

Eu sei, eu sei. Estou sentindo outra vez. Ontem não foi o primeiro indício de que está voltando. No dia da mudança aconteceu de eu não conseguir sair do banheiro. Fiquei lá uma hora, encostada à porta, sem conseguir me mexer até que alguém bateu e pediu para entrar. Meus dedos mal conseguiam tocar na fechadura. Foi terrível. Andra me deu água de Melissa quando me viu agachada a um canto, abraçada a mim mesma. Ela não faz idéia do que se passa. E eu vou confessar, tive outro incidente. Devo chamar de quê? Surto?

Foi há alguns meses. Eu saí com a Cida, ela queria comprar um vestido. Depois fomos comer alguma coisa. Então ela me disse para ir para uma mesa e esperar lá porque havia muita gente, uma fila daquelas. Eu fiquei no único lugar disponível e me distraí olhando as pessoas, as faxineiras, a luz que entra pelo teto de vidro, balões pendurados, essas coisas e o tempo passou um pouco, não sei, dez ou quinze minutos, nem isso. Daí eu olhei para aquela gente toda e simplesmente não vi a Cida. Entende? Eu a procurei entre as pessoas, levantei e busquei com o meu olhar mais atento e nada. Daí subiu aquele calor que vem nessas horas e o terror que se segue a ele.

Eu tentei racionalizar que ela estava lá em algum lugar e logo ia aparecer, mas coisas horríveis me vinham à cabeça, tais como: ela foi embora e me deixou aqui ou ela está perdida ou foi raptada (!) ou... Tudo absolutamente ridículo, eu sei. Entrei em um estado de pavor em que não consigo sair do lugar, não movo um dedo, fico inerte dentro do horror. Eu quase não conseguia mais respirar quando ela apareceu com a bandeja, sorrindo. “Que fila, Mirna!”, disse sem suspeitar. Comi o lanche maquinalmente, tentando voltar ao estado “normal” sem que ela percebesse que eu saíra dele.

Eu não quero passar por tudo novamente. Medicações pesadas, sessões de análise, regressão, compreende? Por isso estou escondendo deles enquanto posso. Os sonhos também voltaram. Como flashes do imponderável eles me levam a um lugar recôndido de mim onde há uma espécie de dor sepultada. Nesse semestre houve essa instabilidade interna tão ameaçadora que eu cheguei a imaginar que desta vez não teria saída. Mas, você sabe, a gente pode se enganar quanto a isso. Eu queria que você soubesse porque se algo acontecer, se eu ficar lá nesse recôndido de mim, pelo menos alguém saberá para onde fui.

Digo isso porque tenho notado que eu me afasto cada vez mais das pessoas, Cida e Andra têm reclamado um pouco: “Mirna, você está tão alheia!”. Mas não é que eu fique devaneando, é que algo me impele ao centro. É, é como se esse lugar fosse o núcleo de mim mesma e eu preciso ir para lá porque é seguro. O medo fica fora. O pânico se dissolve quando eu fico dentro do que desconheço. Parece-se com uma mornidão como quando a gente estava dentro da mãe. Tenho pensando muito que esse lugar pode ser a minha perdição ou redenção. Você vai saber explicar isso aos outros se acontecer? Eu quero dizer, se eu me perder dentro desse centro invisível?

Vou terminar a pintura nesse meu ritmo vagaroso. Quando tenho sede tomo água de Melissa que é para ir me preparando para a noite, fico calma e consigo dormir melhor. Durmo no apartamento do Zeca por uns dias. Lembra dele? Tão gentil! Mas, sabe, a insônia tem me rondado, como sempre. Nessas horas eu peço pra ele ler alguma coisa pra mim e ele escolhe poemas do Drummond, do Mário Quintana ou algum salmo que escolho ao acaso. Mirna, confio em você que saberá o que fazer de mim quando eu estiver alheia e catatônica no meio do nada. Ajude-me então, você que me é.

4 comentários:

Caco disse...

Puxa vida!

Biba disse...

Pois é, então. Beijos. Carpe Diem.

Anônimo disse...

forte, denso, poéticolindo
como você
Clarissa

Biba disse...

Obrigada! Não sei o que dizer... Vem da alma, só isso. Carpe Diem. Beijos