domingo, 28 de fevereiro de 2010

Florbela Espanca

A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

No aquário

Pálida, desligou o ventilador. Calor de mil graus. Chuva fina lá fora e os homens trabalhando na reconstrução do pátio do estacionamento. Espiou pela janela, entre as cortinas cor de cenoura. Hábito antigo esse de espiar pelas cortinas. Desde criança. Desde sempre, porque a mãe cutucava o lá fora assim, entre persianas. Viu o rosto no espelho: pálida. Devia ser a medicação. Ou, vai saber. Tanto calor assim baixa a pressão. Toma um gole de licor de menta. Gosta de sentir o sabor entre os lábios. Passa a língua de leve, sem pressão, só para sentir mais. O gosto se espalha e a boca toda é menta refrescante. Ele podia se perder no meu beijo licorado. Ele bem que podia voltar e ver que o estacionamento está sendo restaurado e há ruídos e batidas de pás no chão. Ele bem que podia entender que o que fiz foi o certo. Ele... No entanto, arrependesse. Ele se foi com o livro do Poe, a carteira vazia e uma mala desarrumada. Pegou o cachorro também. Foi assim. Isso acontece. Será? A palidez deve ser de saudade dele, tão intensa. Velocidade da luz e estão juntos no aquário, olhando-se como olham os peixes. Fecha os olhos e preenche o escuro com a imagem dele, peixe no aquário peixe no aquário para sempre.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Redemoinho


Lembro coisas tão antigas que nem sei se as vivi realmente. É um redemoinho de imagens. Uma torção de sentimentos. Ouço Sade para esquecer, mas a memória apenas finge esquecimento. Tenho gosto de morango e chocolate na boca entreaberta. Tudo passa como um filme minimetragem. Enjoo das figuras que vejo e me vejo também. Sou mais magra e mais atenta, hoje estou distraída pelo gole de vinho tinto. Amanhã imagino mais uma porção de coisas. Amanhã acordo como todo dia e relaxo ao som de Sade. Tenho esse gesto contido porque meu coração fervilha e o medo do outro me aguça a pele. Sempre é bom ter cuidado com o outro, evitar confrontos. Evitar olhar direto nos olhos ameaçadores. O gosto do vinho, dos morangos e do chocolate se misturam como as imagens na minha mente. Penso em desaparecer. Viver ao revés. Contar os dias para trás e aí me livrar dessa colisão do tempo. Vou para o futuro mas a imago que fica é passado mordaz. Disco teu número várias vezes mas não, não termino de apertar as teclas. Medo e vontade. Só que você é esse outro que me vem em sonhos e imagens corrediças. Me alinho, realinho e tomo outro gole de vinho. Sempre tinto. Sempre seco.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Esperança

Julgava ter perdido você nos labirintos dos caminhos. E são tantos! Então reencontrei você de um modo singular. Hoje nossas vozes se parecem e esqueci as vezes em que você esteve tão longe. Esqueci porque amar você é coisa que faço desde menina e é preciso conservar o amor embora distante. Você me conta sua sina. Eu lhe conto a minha. Vivemos sob o mesmo sol? Quem sabe? Hoje eu queria ver o mar, pra ter um pouco de água salgada na minha garganta ardida. Queria que você me levasse para passear pelas ruas, sem compromisso de nada, como se fazia antigamente. Só andar e descobrir casas, becos, paralelas. Você gostava de caminhar comigo ao seu lado e nos diziamos coisas como: "É era de Aquário". Tudo isso se foi mas as lembranças reacendem depois de seu telefonema. Mensagem secreta na secretária eletrônica. Mas eu entendi. Porque eu sempre entendi todas as coisas em você de um modo que você nunca notou porque, distraído, olhava só para você mesmo. Estávamos crescendo e isso explica tanta coisa, não é? O bom é saber que eu não perdi você como tinha imaginado. E, os labirintos, eles sempre estarão entre nós, no meio de nós. Então eu digo pra você que há saída, com Minotauro e tudo. Queria dizer isso pra você acreditar como sempre acreditou em mim.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dissera para Deus, assim, bem baixinho: me leva. Mas não era hora e, no fundo, sabia disso.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Clarice Lispector

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Deixa eu me quebrantar nos teus braços e depois sorrir desvairada porque a manhã insiste e o sol está por nascer.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Jorge Luis Borges

Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti, mas viver sem amor acho impossível.


Grão

Via no ar da sala a poeira transparente que abarca os dias. Não essa que se posta sobre as coisas. Olhava para o indizível como quem faz uma trança em cabelos de criança. Ontem ela chorou o choro dos inocentes. Daqueles que se culpam por tudo quando a vida é assim mesmo, cheia de truques e pegadinhas. Seu choro-lamento inundou o quarto de uma dor infinita. A gata, olhos semicerrados, fingia não ver que ela se contorcia na dor. Hoje, olhando a poeira dos dias dançando no ar, ela tem os os olhos inchados. Pensa que amanhã vai ser outro dia, como quis Chico Buarque, como querem todas as pessoas, mesmo as que não sabem cantar. Ela não sabe cantar. Vive sem voz, sempre pigarreando. A paisagem na neblina, pensa, enquanto com a mão delicada ousa tocar o ar e vê o movimento suave das partículas sob a luz tênue que entra pela janela. Fecha os olhos, pensa nele. Nos olhos, sempre. Porque é por eles que sabemos tudo. Palavras são somente palavras, filosofava. Cada grão de poeira invisível lhe dava vontade de ser também um. Suspirou aflita. Ela era um tanto aflita. Fingiu segurar o pó com os dedos em pinça. Fingiu que podia tudo o que quisesse, inclusive pegar o inaudito. Soprou a poeira imaginária e recostou-se sobre o sofá. Uma lágrima fez a curva do nariz e outra ficou empoçada no olho esquerdo. Assim é que o dia de amanhã seria melhor que o de hoje, bastava esperar flutuando como um granulo de poeira.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Jorge Drexler

El velo semitransparente
Del desasosiego
Un día se vino a instalar
Entre el mundo y mis ojos.
Yo estaba empeñado en no ver
Lo que ví, pero a veces,
La vida es más compleja de
Lo que parece.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Letícia

Um dia Letícia, você escreveu uma linda, lindíssima carta para mim em seu blog. Faz tempo isso, você havia terminado de ler O Imprevisto. Era mês de junho se bem me lembro e eu não disse nada. Nenhuma palavra de pura emoção vivida nas tuas palavras. Nunca ninguém escreveu carta mais bonita para mim e nunca nenhuma delas foi publicada, assim, pra toda gente ler. Hoje, perdida nos recôndidos de mim, lembrei da carta e me deu saudade de você. Como se eu a tivesse visto ontem e hoje já sentisse o vagar da lembrança. Esta não será uma longa e bela carta. Esta mais para um bilhete. Para te dizer do quanto meu afeto te abraça ao longe e do quanto você é especial para mim. Não, não simplesmente especial, do jeito torto que as pessoas dizem. É mais que isso, você me entende, eu sei. Pois hoje, no calor do verão sulista, olho para seu livro aqui do meu lado e saio relendo. Vejo as marcas da vida, do amor e da morte em tudo o que fazemos. Ser escritor é isso, sair do casulo de vez em quando para se mostrar timidamente aos outros. Logo vem a incerteza e já queremos de volta nosso cantinho para nos resguardarmos um pouco, feitas de um leve contentamento que somos. Letícia, dedico o dia de hoje pra você no meu calendário restrito. Um dia de sol, luz e energia. Carpe Diem!!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Loucura

Pensava coisas sem sentido. Coisas bizarras, irreverentes, trágicas. Sabia que o funcionamento da mente não é assim o tempo todo. Não podia ser, questionava. Teve dias que eram como desvarios. Mente inquieta, ideias loucas. O esquisito era que ficava deitado na cama somente olhando para o teto, esperando passar o turbilhão de imagens que lhe vinham ao cérebro. Quanto mais ficava assim, piores eram os resultados. Temia levantar-se e cair. Tinha medo de ir lá fora e ser atropelado na calçada. Supunha que seria assaltado ou violentado. Seus pensamentos se desencadeavam com uma força destruidora e, dentro dele, corria um bicho ferido tentando amanhecer.